Coração, Iluminação e Liberdade...


'Do tormento causado pela tríplice miséria existencial vem a procura pelo meio de destruí-la. Será essa busca inútil?[...] 
Não, pois o resultado obtido pelos meios comuns não traz segurança nem é definitivo'. - Ishvarakrishna, Samkhya Karika, I:1.- 

Este texto tem como objetivo traçar um mapa e apontar direções possíveis para o crescimento interior, usando as ferramentas e a visão que o Yoga tem do ser humano. Porém, antes de abordarmos os assuntos mencionados no título, precisaremos, primeiramente, fazer-nos algumas perguntas que servirão como ponto de partida para nossa reflexão. Essas perguntas são três:

1. Qual é o primeiro erro? 
2. Onde ele começa? 3. Como podemos nos livrar dele?

A primeira pergunta tem resposta fácil, pois, segundo Patañjali, o primeiro e mais básico erro
do ser humano é a ignorância. Ignorância aqui não significa falta de inteligência ou agilidade mental. A palavra avidya, em sânscrito, refere-se a um outro tipo de ignorância: a ignorância metafísica, a incapacidade de responder à pergunta 'quem sou eu?'. Lembremos que o objetivo do Yoga é abolir a consciência profana em benefício de uma outra consciência superior (buddhi) e, através dela, absorver-se no Princípio Consciente, chamado Purusha.

A segunda pergunta pede uma reflexão mais profunda, já que não existe início para a ignorância 
humana. Ela nos acompanha desde antes de nosso nascimento. Nesta vida, a ignorância começa junto com a primeira inspiração que fazemos ao nascer. Junto com essa primeira inspiração, começa um processo gradual de identificação do ego e a mente com o corpo, que vai se 
intensificando conforme crescemos.

A terceira pergunta precisa de mais reflexão ainda e será respondida ao longo do texto.

A afirmação acima, segundo a qual a ignorância nos acompanha desde antes do nascimento, não
inclui necessariamente a crença na metempsicose (reencarnação), embora esteja explicitamente incluída no Yoga Sutra de Patañjali, assim como na totalidade das escrituras do Yoga da antigüidade. Não precisamos nos deter nesse detalhe, pois, mesmo que não aceitemos a lei da transmigração das almas, o Yoga pode fazer uma tremenda diferença em nossas vidas.Karma e ignorância existencial

Patañjali menciona no Yoga Sutra o termo jati, que significa 'herança' ou 'nascimento'. O
termo jati define o nascimento humano apenas como uma das fases de uma sucessão de inúmeros nascimentos, vidas e mortes, um processo conhecido como samsara, que pode ser comparado a uma roda que gira incessantemente, mantendo as almas aprisionadas através da lei da causalidade (karma).

O destino individual é definido por cada um de nós, pois, sendo dotados de livre arbítrio,
podemos sempre optar entre o bem e o mal e, conseqüentemente, libertar-nos dos condicionamentos para, por fim, sairmos da roda do samsara. Porém, conforme o erro existencial vai agravando-se, nossas crenças e medos vão se cristalizando e acabamos por nos assemelhar a uma pupa, presa dentro do casulo que ela mesma teceu, e da qual não pode mais sair.

Quase todos nós, seres humanos, somos como a pupa que não consegue se libertar e que, não
tendo forças para sair da prisão fabricada por si própria, acaba morrendo dentro dela. Não conseguimos transcender nem conseguimos enxergar a realidade que se esconde por trás do mundo das aparências.

A ditadura do ego

Gastamos tanta força na construção dos nossos casulos que não nos sobra fôlego para sair
deles. Esses casulos são tecidos pelos nossos próprios desejos, crenças, instintos, vontades e atitudes, além dos bens materiais que conquistamos ou pelos quais aprendemos a lutar.

Shri Aurobindo disse, a esse respeito, o seguinte:

"A natureza humana tende, devido a sua essência, a permanecer vinculada ao cordão do ego.
Embora tentemos fugir dele, ele está frente a nós mesmos ou pode esconder-se como uma sombra por trás de nossos pensamentos e ações. O primeiro passo é reconhecer essa realidade. O segundo, discernir a falsidade e o absurdo dos movimentos do ego. Intimidá-lo e rejeitá-lo a cada passo será o terceiro. Porém, somente desaparecerá por completo quando conseguirmos perceber, experimentar e sentir o Único em todas as coisas e em qualquer lugar."
A practical guide to Integral Yoga, p. 146.

O ego é a interface que nos ajuda a agir no mundo. A princípio, não há nada de errado com ele.
O grande problema é que nos identificamos com ele a tal ponto que acabamos por perder de vista nossa essência e nossa própria razão de viver.

Quando essa identificação total com o ego acontece, acabamos por nos perceber como entidades
separadas da existência e da criação. Dessa forma, passamos a ver o mundo unicamente em termos de objetos pelos quais podemos sentir apego ou aversão (raga e dvesha). Assim, nossa vida transcorre numa troca incessante de estados anímicos que refletem esses dois pólos.

A palavra usada pelos yogis para designar o ego é ahamkara, que significa "eu-fazedor". Deriva
dos termos aham, eu, e kara, fazer. O ahamkara designa aquele princípio da individualidade que acredita estar fazendo e que age no mundo de acordo com essa visão da separação: 'eu-fazedor aqui estou fazendo e não preciso de mais nada nem ninguém'.

É por isso que o ego é considerado o grande vilão na filosofia hindu, em geral, e no Yoga, em
particular. Fazendo uma leitura dos símbolos do épico Ramayana, poderemos perceber que o ego é apresentado como o demônio Ravana, o seqüestrador da alma, que, armado com os cinco órgãos dos sentidos e os cinco órgãos de ação, representados pelas suas dez cabeças, seqüestra nossa essência divinal, a alma, representada no Ramayana pela princesa Sita.

Sita é levada para o 'mundo inferior' (a ilha de Lanka) e mantida presa num jardim interior do
palácio de Ravana, o qual representa a experiência do mundo sensorial. Lá, ela mantém sua força interior concentrada em Rama. Porém, ele não consegue resgatar a princesa sem a ajuda de Hanuman, o deus-macaco, que é a própria encarnação da força vital (prana).

A raíz da ditadura do ego é a ignorância, avidya. Quando a ignorância desaparece, o ego passa
a ocupar o lugar que a ele corresponde. Isso acontece num processo em que se alcança um estado de consciência chamado samadhi ou iluminação. Então, a essência mais íntima do ser (adhiatma), 
se revela e, como esclarece Patañjali (Y. S., I:3), 'repousa em sua própria natureza (svarupa)'.

Coração: a luz no fim do túnel

Embora o ego não se limite apenas ao interior da pele, ele acontece mais no corpo, com o qual
se identifica. A conexão entre o ego e o corpo parece estar na altura do coração. As escrituras do Yoga estão cheias de referências à importância do coração na jornada interior pela busca da essência. Vejamos a seguinte passagem: 'Dentro do coração, em uma pequena cavidade, repousa o universo. Um fogo arde aí, irradiando em todas as direções.' 
Mahanarayana  Upanishad, XI:9-10.

Portanto, o coração é considerado como a ponte entre o finito e o infinito, entre o corpo e o
espírito. Na fisiologia sutil do tantrismo, existe um 'nó' psíquico (granthi, em sânscrito) no chakra cardíaco que limita, através dos karmas, a experiência da consciência infinita apenas ao ego, ao psiquismo e ao corpo físico. Esse 'nó' precisa ser desfeito através do despertar da energia psíquica latente nos cakras inferiores antes que ela se manifeste nos superiores.
No shivaísmo da Caxemira, essa limitação recebe o nome de atma samkocha, ou 'contração do eu'. Essa contração começa em nível emocional, no coração, com o indivíduo percebendo-se como uma entidade separada, isolada e diferente do universo que o cerca.

Assim, surge o grande obstáculo, o primeiro produto da ignorância: o medo. 

É a partir do medo que se decantam os pares de opostos como prazer-dor, amor-ódio, bem-mal, etc. Em nível mental, essa contração inicial do eu manifesta-se na forma da dúvida. Passamos a duvidar de nossa realidade interior, da dimensão real do ser que somos ou do lugar que ocupamos no universo. 
Essa situação é como uma teia feita de nós que nos mantêm presos no casulo do ego, feito pupas indefesas, vítimas da nossa própria ignorância inata.

Repetimos, então, a terceira pergunta com que iniciamos este texto: como podemos sair do
estado de ignorância? Usando diferentes ferramentas, o yogi tenta cortar os nós psíquicos e libertar a consciência das amarras que a aprisionam. No entanto, essa aparente escravidão da alma é apenas ilusória, embora para a pessoa não-iluminada essa seja a única realidade existente. Essa situação acontece porque ela está enredada em seus próprios karmas e não consegue ver mais além. 
A Mundaka Upanishad (III:2.9) nos diz belamente que 'desfazendo os nós do coração, tornamo-nos imortais'.

Resumindo, quando se esvai a falsa identidade da alma com o ego, a mente e o corpo, tornamo-
nos de fato, aquilo que sempre fomos: o Puro Ser, incondicionado, feliz e pleno. A aniquilação dessa falsa identidade chama-se samadhi, que em sânscrito significa 'concentração intensa'.

Para o yogi, o caminho da iluminação está cheio de provações e é semelhante ao ordálio que
sofre o príncipe Rama para resgatar sua amada das garras do demônio. Durante essas provações, o praticante, assim como o príncipe, é desafiado a deixar de identificar-se com as manifestações ou com os diferentes aspectos do ego, refinando cada vez mais suas percepções sutis.

Desta forma, conforme o aspirante progressa na prática, etiquetas como eu e meu, vão perdendo o
sentido que antes tinham. 
Essa sensibilização crescente desenvolve a capacidade de abandonar tudo aquilo que possa estar ajudando o ego a ofuscar a realidade transcendental. Para que isso possa acontecer, é preciso que passemos pela experiência de abrir o coração."
Professor Pedro Kupfer em Coração, Iluminação e Liberdade

Comentários

  1. Oi, Lilian,
    Muito bom este artigo com os esclarecimentos de Pedro Kupfer, gostei muito. Bjs.

    ResponderExcluir

Postar um comentário