Corpo, imagem e Yoga - Pedro Kupfer


"Imagens de pessoas praticando āsanas são usadas hoje em dia para vender desde seguros de vida a alimentos, desde carros a viagens. Há de tudo: gente em posturas de meditação, yogis em posturas de equilíbrio, alongamento ou força.

Essas fotos têm um denominador comum: apresentam pessoas esguias, fortes, lindas, e aparentemente de bem com a vida, fazendo com a maior naturalidade
ações que estão muito além do alcance da imensa maioria dos seres humanos. Todos, invariavelmente, sorrindo.

A imagem do Yoga que se projeta através dessas poses intimida muitas pessoas que se sentem acuadas pelo grau de dificuldade das ações ilustradas.
O problema é que o tema não se limita ao mundo da publicidade: esse tipo de imagem é ubíqua também em redes sociais, publicações e blogs supostamente
especializadas no tema.Nessa esteira, há gente que pensa, legitimamente: “se o Yoga é para pessoas jovens, magras, bonitas e flexíveis, então não é para mim, pois não me encaixo em nenhuma dessas categorias”. O amigo leitor já se
perguntou quantas pessoas desistiram de fazer Yoga por conta dessa imagem que se projeta dele?

Modelos intimidatórios.
Quantas mulheres desistiram de praticar ao ver aquelas roupas ajustadas que se usam na sala, que revelam todos os contornos do corpo, por considerarem
que a forma do próprio corpo não se encaixa nesse padrão “aceitável”? Ou por acharem que não são suficientemente jovens, saudáveis, fortes ou flexíveis para praticar? Ou por não conseguirem compreender a diversidade de tipos de Yoga disponíveis?

Desde o ponto de vista de uma boa parcela da população, o Yoga se apresenta como algo inacessível, que está muito longe da realidade da pessoa.
Apesar de sabermos que o objetivo final do Yoga é a liberdade, e apesar desse ser ainda hoje o discurso “oficial”, a verdade dos fatos é que a imagem do
corpo (especialmente o feminino), que se projeta através dessas figuras, só reforça o velho e equivocado estereótipo do corpo como objeto e fonte de felicidade.(...)


“Sedentários: o Yoga não é para vocês”. A mensagem implícita na imagem do praticante jovem e esguio é muito similar a esta: “se você está fora de forma, ou se é velho, feio, barrigudo ou triste, então o Yoga não é para você. Busque outro lugar para morrer”.
Desta maneira, a imagem da forma “ideal” espanta qualquer pessoa cujo corpo não se encaixe nesse modelo e reforça o velho e cruel paradigma da felicidade associada a uma forma corpórea considerada “perfeita”.

Com frequência, são decorrentes dessa distorção doenças psicossomáticas como anorexia,  bulimia, bem como depressão, autocrítica exagerada ou baixa autoestima. E, se nós, como praticantes e professores de Yoga não formos parte da solução para essa situação, seremos necessariamente parte do problema.

Os anúncios e selfies que mencionamos no início só replicam e eternizam o padrão vigente imposto pela cultura dominante na nossa sociedade. E essa cultura é cruel.

O sofisma do corpo perfeito.
Noutras palavras, essas imagens representam exatamente o oposto da liberdade que o Yoga propõe como meta, já que esse tipo de postura só colabora para alimentar ainda mais a distorção de autoimagem e o excesso de autocrítica na busca do “corpo perfeito”, que seria, segundo esse sofisma imposto, o corpo feliz.
Assim, a corrida para perder peso, a contagem obsessiva de calorias, a busca pela dieta mágica que vai finalmente tornar meu corpo aceitável e a inevitável comparação com os corpos dos demais, só colaboram para eternizar o círculo vicioso.

A discriminação contra qualquer tipo de corpo, contra qualquer forma ou biotipo que não se encaixe no padrão impossível da magreza extrema, é uma distorção
tão feia quanto o racismo, o sexismo ou a xenofobia.
Porém, quanto mais o Yoga se populariza, parece que mais se reforça a identificação das práticas com essa ditadura da imagem do corpo “perfeito”. Assim, e apesar do Brasil ser o país da miscigenação, é raro ver em algumas salas de Yoga, pessoas que não sejam brancas, magras, jovens e elegantes.

O corpo como símbolo.
Como é que chegamos a esse ponto? Como é que o Yoga, que sempre foi uma ferramenta para a liberdade, o autoconhecimento e o crescimento interior, acessível a todos, acabou sendo apresentado como uma ferramenta para submissão do corpo humano, concretamente o corpo feminino, ao modelo irreal imposto pela cultura dominante?

Viver é coisa do corpo. O corpo é a realidade orgânica, o palco das experiências onde a vida acontece. Porém, há muito mais guardado nele: o corpo também é uma construção ideal, é a inflexão que nos torna gente, através da qual nos identificamos como humanos dentro dos contextos ambiental, social e familiar.

O corpo é, igualmente, a referência através da qual construímos e projetamos a imagem de quem somos, tanto como indivíduos quanto como raça humana.
Nesse sentido, o símbolo que é o corpo é capaz de construir e transmitir significados e mensagens através da sua forma. Isso, por sua vez dá lugar a
costumes, gestos ou formas de conduta padrão, que determinam e condicionam as escolhas dos indivíduos.
O pior é que muitas vezes, pensamos que tomamos decisões ou perseguimos desejos usando nosso livre arbítrio, e não nos damos conta de que estamos apenas seguindo condicionamentos impostos, que nada tem a ver conosco ou com a plenitude que somos.
Assim, quando nos expomos à imagem de uma esbelta modelo num āsana complicado sorrindo relaxadamente como quem não faz esforço algum, a mensagem implícita na foto pode afetar negativamente a nossa autoestima,
uma vez que a nossa experiência prática nem sempre coincide com o que vemos.
E isso não precisa acontecer dentro da sala de práticas: pode se revelar ao perceber a dificuldade para amarrar os próprios cadarços.

Modelos e paradigmas.
Antigamente eram as artes, a pintura e a escultura. Atualmente, os meios de comunicação são os grandes responsáveis pela divulgação dos padrões comportamentais e estéticos que transmitem valores como saúde, beleza, bem-estar ou tranquilidade. Esses padrões, ao mesmo tempo, funcionam como imposições ou soluções para a realização da felicidade.
Assim, o Yoga é representado muitas vezes não apenas como modelo de vida saudável ou prática terapêutica para, digamos, regular o peso ou combater a ansiedade, mas igualmente como agente para a imposição de condutas e escolhas.

Esse último aspecto, menos visível, inclui ainda a condena ou a rejeição daquilo que não se encaixa no padrão, gerando igualmente estigmas, remorsos e culpas.
Os āsanas são usados como ferramentas para seduzir ou pressionar a pessoa em direção àquilo que ela deveria ser em termos físicos.
No caso da publicidade de algum produto associado à imagem, ainda temos mais um cruel twist implícito: “adquirindo este produto você ficará idêntico ao modelo e passará a formar parte do seleto clube daqueles que estão de bem com a vida”.

A cilada das adaptações.
Claramente, percebemos nessas representações do Yoga que houve uma mudança nas prioridades ou fins, naquilo que se espera da prática, que se adapta dessa maneira aos valores e padrões da sociedade de consumo.
O foco não mais está na iluminação, na tranquilidade, na autoaceitação, no contentamento, na vida feliz ou em cultivar os valores, mas em modificar a forma exterior.
O tema agora é conseguir uma imagem “aceitável” do próprio corpo, encaixotando-o a qualquer preço no cânone de beleza, e buscando obsessivamente o esquivo ideal da perfeição nas posturas, como se a iluminação
e a felicidade estivessem escondidas nelas. O problema é que essa atitude, necessariamente, acaba em sofrimento e frustração.

Na ânsia dos anunciantes por associar produtos com o corpo-objeto feminino para lucrar, e na distraída e conveniente aceitação que algumas modelos cultivam para entrar no jogo (só para ficar com o tema da publicidade associada às imagens da prática), se perde a dignidade da mulher e se eterniza a exploração da sua imagem.
O tema se amplifica ainda mais quando as pessoas, de maneira voluntária porém um tanto inconsciente, entram na corrida para se exibir ou fotografar em
posturas cada vez mais exigentes, não apenas pondo em risco a própria integridade física, mas igualmente privilegiando de maneira clara o registro, em detrimento da própria vivência.
Digo isso plenamente consciente de que questionar a objetificação do corpo feminino pode me atrair a ira daqueles que pensam que estamos aqui censurando o direito de cada um de buscar a felicidade de acordo com seu próprio gosto.
Ou buscando “a sua própria verdade”, como está na moda dizer. Minha intenção não é condenar condutas ou opções mas convidar à reflexão. Pois um dos objetivos do Yoga é justamente nos fazer refletir sobre nossas crenças e paradigmas (e se for o caso, mudá-los), não é mesmo?

A comunidade do Yoga é reflexo da sociedade?
Quando comecei a praticar, no início da década de 1980, as coisas não eram assim: lembro bem que, na minha primeira turma, na cidade de Montevidéu, havia donas de casa, jovens, adultos, magros, gordos.
Praticávamos juntos na mesma sala minha mãe, meus irmãos e amigos, e pessoas que teriam idade para ser nossos avós.

Os corpos eram diversos em todos os sentidos, e um fiel reflexo da sociedade uruguaia da época. Hoje em dia, o que vejo no ambiente do Yoga, seja na América do Sul, na Europa ou até mesmo na África, difere em muito do que vejo nas ruas.
Minha condição de estudante, que vivia com apenas algumas moedas no bolso, não me permitia pagar pelas aulas, mas mesmo assim meu professor foi muito
generoso e me deixou praticar sem pensar no dinheiro.
Somente muitos anos depois, já morando no Brasil, é que voltei àquela escola para fazer uma doação que compensasse e retribuísse a magnanimidade do meu professor.

Yoga para todos.
Se não fosse por essa atitude dele, não sei se teria conseguido aprender Yoga. Pelo menos, não teria começado tão cedo.
Seria bom se pensássemos, como professores de Yoga, se estamos de fato fazendo algo válido nesse sentido, tanto para compartilhar o ensinamento com aqueles que não podem pagar por ele, quanto para confirmar que não estejamos, mesmo que inconscientemente, intimidando ou desestimulando de se aproximar do Yoga, a pessoas cujos corpos não se encaixam no estereótipo vigente.
Talvez assim, com a conscientização de todos, a nossa comunidade de Yoga pudesse, aos poucos, ser um reflexo mais fiel dos corpos da sociedade em que
vivemos. Com isso, poderíamos também frear a avalanche na qual está se transformando a ditadura das formas e das práticas rígidas, padronizadas e congeladas, que não levam em consideração as características únicas desde cada corpo.

Já recebemos a suficiente pressão noutros lugares. Na prática, podemos deixá-la de fora. A ideia, em relação à prática de Yoga é oposta a essa imposição:
que possamos nos encontrar em casa. Que possamos estar em paz conosco e com o mundo. Que possamos ser o que somos. Que possamos nos aceitar como pessoas plenas e felizes, dentro das nossas próprias limitações.

Sem críticas nem pressões. Sem retoques digitais nem maquiagem. Sem condenas nem culpas. Sem questionamentos à própria autoestima. Sem sermos
olhados como mercadoria.
A retomada da meta original do Yoga e a correção do rumo que damos às práticas, depende unicamente de nós mesmos. E disso dependerá também, o Yoga que nossos netos recebam. Qual é a herança que lhes queremos deixar?
Namaste!

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